Netflix vicia?

Por Marion Minerbo

Olá, Ana Lisa, sobre o que gostaria de conversar hoje?

Olá, Marion, veja só que loucura! Depois que conversamos sobre as séries (“Que série você está assistindo”?), um amigo que segue nosso blog me contou que passa seus fins de semana fazendo “maratona”. Fica até 10 horas assistindo a vários episódios seguidos! Fui ver na internet e descobri que isso já tem até nome: binge watching. Como você comentou que a febre pelas séries revela uma fome de alteridade, bem como a necessidade de ‘viver’ outras vidas além da nossa, me perguntei se ele teria muuuuuita fome de alteridade. Ou se seria um fenômeno diferente. O que a psicanálise tem a dizer sobre isso?

Primeiro, fico feliz que seu amigo esteja seguindo nosso blog. Espero que esteja curtindo e compartilhando! (risos).

De fato, é um fenômeno qualitativamente diferente quando o analisamos do ponto de vista do funcionamento psíquico inconsciente.

Vejo o desejo de estar em contato com o outro-diferente-de-mim – via séries ou via literatura – como um movimento vital, que amplia nosso repertório psíquico. Esse é o viés da fome de alteridade, de que falamos aquele outro dia.

Já o maratonista – na verdade, binge quer dizer compulsão – está menos interessado em conhecer outras vidas do que em manter seu sofrimento psíquico sob controle. Vamos entender como isso acontece por meio dessa compulsão…

Puxa, essa distinção que você está fazendo é nova para mim!

Buscar o prazer envolve uma dinâmica bem diferente de evitar a dor psíquica. A psicanálise distingue o mero desprazer, da dor psíquica propriamente dita. O desprazer tem a ver com frustração. É chato, mas dá para viver com isso. Já a dor tem a ver com uma angústia que, de tão intensa, chega a desorganizar o psiquismo. E aí a pessoa trava. A vida trava.

É exatamente o que está acontecendo com meu amigo! Acabou de se separar – foi uma separação traumática, ele não esperava isso de jeito nenhum, ainda mais depois de 10 anos de um bom casamento. Travou. Me disse que passa os fins de semana fechado no quarto escuro, sem ver ninguém. E que ficar assistindo às séries é a única coisa que lhe traz alívio.

Puxa, que sofrimento! E se você lhe perguntar alívio do quê, talvez ele consiga dizer que essa perda brutal o deixou sem chão, perdido. É possível que nem tenha palavras para descrever como se sente desenraizado, solto no mundo, em um estado meio liquefeito.

Eu percebi que não era bem uma escolha do tipo “estou morrendo de vontade de assistir 10 horas seguidas da minha série predileta”. Era mais uma necessidade de ficar quietinho sem fazer nada que exigisse esforço. Ele não tinha mesmo energia para nada! Liquefeito é uma boa palavra para descrever o estado dele.

Veja só. Normalmente o eu tem uma espécie de ‘pele psíquica’ que o envolve e lhe proporciona a sensação de ter contornos, de estar contido. Ela funciona como uma fronteira que separa ‘dentro’ e ‘fora’. Quando ela arrebenta, o eu se desorganiza, desmorona, transborda, se derrama, se esparrama: fica liquefeito. O eu fica, literalmente, ‘fora de si’.

É uma angústia horrível! Eu já senti isso.

Eu também…

A pele psíquica demora para cicatrizar. E tem idas e vindas nesse processo. A maratona de séries funciona como um envoltório feito de imagens, sons e música; e também há narrativas, que prendem a atenção. Esses estímulos mantêm o eu focado, coeso e integrado por algum tempo, produzindo alívio.

É uma forma de automedicação!

O tempo do luto é o tempo da cicatrização da pele psíquica.

Faz sentido! Marion, eu conheço gente que não passou por nenhum trauma – pelo menos aparentemente – e também faz maratonas desse tipo com muita frequência. Elas têm a mesma função nesses casos?

Preciso pensar…

Sim e não. Tem gente que sente que não dá conta da vida. Isso acontece porque estão aprisionados por uma / em uma identificação melancólica.

Agora boiei. O que é isto?

É o nome de uma posição subjetiva na qual a pessoa se sente cronicamente inviável, indigna de amor, carta fora do baralho. Ela sente que não deveria existir. Isso, naturalmente, é muuuuito angustiante. A maratona de séries é uma forma entre tantas de aliviar a angústia. Mas ao mesmo tempo é uma maneira de confirmar, para si e para o mundo, que se retirou e jogou a toalha, já que não dá mesmo conta da vida. A ressaca moral pós-maratona acaba com o que restava de autoestima. E o círculo vicioso recomeça, já que a origem do sofrimento – a tal identificação melancólica – continua lá.

Quer dizer que nesses casos a maratona funciona como uma droga? A pessoa se torna ‘série-dependente’? (risos).

(risos) Exatamente! O processo começa como ‘automedicação’, mas o uso prolongado do ‘remédio’ produz dependência.

Muito louco tudo isso!

10 comentários sobre “Netflix vicia?

    • Oi Eveline,
      Essa expressão é também o título de um filme, né? Todos temos núcleos melancólicos que podem ser ativados por alguma situação de vida. O problema é quando eles estão cronicamente ativados.

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  1. Perfeito para explicar o processo pelo qual passa a minha nova filha. 16 anos. Nós adotamos. Infelizmente ela teve que se despedir dos amigos que tinha na cidade em que residia. Agora, imersa em Narutos sem fim, se anestesia dessa dor. Obrigada. Pude entende-la melhor. Empatia vai me ajudar a ajudá-la. Bjs gratos.

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    • Desculpe a demora em responder, Adriana. Ainda estou aprendendo a mexer no WordPress. Incrível como às vezes basta uma pequena dica para a gente conseguir fazer outra leitura da situação, né?

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  2. Olá, Marion,
    Gostei bastante do texto, nunca tinha enxergado as maratonas de Netflix por essa perspectiva!

    Mas pensei em outro tipo de binge watching, que não me pareceu contemplado no seu texto: aquela turma que resolve fazer maratona como um programa social mesmo. Por exemplo, conheço casais que se organizam para assistir a uma temporada nova inteira, em um final de semana só, pois eles estão super ansiosos para saber o que vai acontecer com os personagens com os quais estão super envolvidos.

    São fugas da própria realidade tb?? Certamente me parece um desequilíbrio, mas não sei se são casos que se encaixam nas explicações do texto…

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    • Vou dar o meu pitaco aqui, embora queira saber da Marion o que ela pensa. Não acho que esse caso que vc citou – de pessoas ou casais – que assistem a uma temporada de uma série inteira de uma vez signifique necessariamente um desequilíbrio. Pode significar, mas não necessariamente. Cada caso teria de ser analisado singularmente para a gente poder afirmar alguma coisa sobre ele – e um possível desequilíbrio só pode ser afirmado no caso de essa prática estar atrapalhando a vida da pessoa/casal, ou impedindo que uma angústia seja de fato elaborada. (Como é o caso tratado no texto: na compulsão, a angústia é aliviada momentaneamente, mas o sujeito não consegue sair da posição melancólica).

      Um casal por exemplo… as maratonas de séries afetam a vida social deles? Os cuidados com os filhos? A vida sexual? O trabalho? É esse tipo de parâmetro que precisa ser olhado em cada caso, para saber se há desequilíbrio ou não… assim como em qualquer outra coisa à qual alguém se dedica por muitas horas.

      E não podemos julgar a priori, nem pela atividade que é exercida (ah, então se o cara estivesse estudando ou trabalhando por 10h, daí tudo bem… mas o vagabundo fica vendo séries!), e muito menos pelo que nós achamos que seria melhor para o outro, de acordo com os nossos valores/opiniões. Só a pessoa/casal poderá dizer se a maratona tá ok, se a maratona é fuga da realidade, se é alívio de angústia sem elaboração, se é enfrentamento de angústia com alguma elaboração (caso da pele psíquica traumatizada). Enfim…”

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      • Puxa, é verdade!! Ótimos pontos!
        Realmente, essa diferenciação entre assistir a séries / trabalhar / estudar não deveria ser feita, o que importa mesmo é o efeito dessas atividades na vida da pessoa (ou casal). Se para os envolvidos é algo prazeroso / saudável, não tem pq condenar a escolha deles mesmo…

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      • Só acrescentando uma coisinha: se alguém está atolado numa posição melancólica a tendência é se isolar. Dificilmente aguentaria ficar tanto tempo com amigos. Ou então está com os amigos, só que em vez de se divertir está se torturando com a ideia de que não tem nada a dizer, sua opinião não interessa a ninguém, etc. Mas isso é difícil de perceber a olho nu.

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      • É isso mesmo, pessoal: o psicanalista está interessado na função que uma determinada atividade tem no equilíbrio psíquico. Se na ausência daquela atividade a pessoa sistematicamente descompensa e surta, aí é um problema.

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    • Maratona de série com amigos pode ser uma delícia, Luiza! Ainda mais se todos estão comentando o que estão vendo. Acho que não é tão diferente de ir com amigos ao cinema, ao restaurante.

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