Mamãe vive só para mim?

Por Marion Minerbo

Julinha (3 anos) no carro indo para a escola e ouvindo a rádio USP.

– USP? O que é USP mamãe?

– USP é o nome da minha escola. Sabe que eu também tenho uma escola, que nem você?

– O nome da minha escola é Viva, e da sua é USP?

– Sim, isso mesmo. E lá na minha escola eu sou professora também, por isso tenho que sair de sexta-feira – é para dar aula na USP.

– Não, mamãe, isso não! Você não é professora também, você é só mãe!

***

Duas semanas depois, no mesmo ponto do caminho:

– USP! Mamãe, você tem alunos?

– Tenho, filha!

– E qual é o nome deles, mamãe?

*

Todos os dias mamãe me leva de carro para a escola. Gosto de ir para lá, de estar com outras crianças, de ter vida própria e… de não ter ela por perto o tempo todo. Gosto muito de ter um pouco de autonomia. Ainda bem que ela entende que eu já tenho uma vida própria.  

De vez em quando me pergunto o que mamãe faz quando não estou por perto. Acho que ela fica me esperando, né? Porque ela não é uma pessoa como todo mundo: é uma mãe! Sabe qual a diferença entre uma pessoa e uma mãe? Uma pessoa vai e vem, trabalha, faz coisas, come e bebe quando tem fome e sede, vê televisão, descansa. Uma pessoa é gente. Já uma mãe é completamente outra coisa!

Alguém muito inteligente inventou e colocou no mundo uma mãe para cada criança. Minto. Às vezes, é uma só para duas ou três crianças. Ainda bem que não é o meu caso. A minha foi inventada para que eu tivesse uma pessoa que não faz mais nada na vida além de se preocupar e se ocupar de mim.

A invenção funciona muito bem porque, para ela, eu sou a coisa mais linda e mais importante do mundo. Dá para ver isso no jeito que ela me olha. Completamente apaixonada. Se eu estiver mal, ela fica mal também. Por isso, ninguém precisa mandar, nem ameaçar, para que ela faça tudo por mim. É por livre e espontânea vontade que ela faz! E o melhor de tudo: parece que ela não tem outros desejos além desse. Não é maravilhoso?

Eu poderia jurar que, quando nasci, minha mãe assinou um contrato que diz que ser mãe é um job 😉 de dedicação exclusiva. É verdade que nas letras minúsculas da nota de rodapé estava escrito que isso só valia pelos 3 ou 6 primeiros meses. Mas não preciso me preocupar com esses detalhes. Para mim, o tempo ainda não significa nada. O que vale é um dia depois do outro.

Acho que está certíssimo minha mãe não ter outra ocupação além de cuidar de mim. Se tivesse, como poderia estar à minha disposição 24 horas por dia? Seria impossível! E para que teria outras ocupações, se cuidar de mim já a satisfaz plenamente? O que lhe daria mais alegria do que me ver feliz, de bem com a vida?

Uma mãe é uma invenção incrível por outro motivo: ela pode tudo. Simplesmente não tem limitações! Não é o máximo? Ela sempre dá um jeito de me entender, e de atender a todas as minhas necessidades. Nunca se cansa. Não precisa de nada, nem de ninguém. É muito forte. Não tem medo. Não sei se isso vale para todas as mães, mas com certeza vale para a minha.

Gosto tanto dela que um dia tentei arrancar seu nariz para colocar na minha boca. Você acredita que ela é tão forte que continuou inteira? Não lhe aconteceu nada! E nem chorou de dor, como eu faria. Que sorte eu tenho de não precisar me preocupar com o bem-estar dela!

Até a semana passada eu achava que quando estou na escola ela não fazia nada: só ficava me esperando. Como se ficasse congelada, uma estátua, e só voltasse a se mexer na hora de ir me buscar. Só que não. Descobri que ela também vai para a escola dela, que se chama USP. Achei estranho: uma adulta ter que ir para a escola? Ela tem que aprender coisas? Pensei que já soubesse tudo…

O que eu quero mesmo compartilhar com você é que fiquei passada quando descobri que minha mãe deseja, ou precisa de outras coisas na vida, além de mim. Como assim?! Então eu não sou suficiente para que ela se sinta plena? Como fui ingênua por ter acreditado nisso!

Confesso que essa ideia me fez sofrer. Era uma dor nova para mim: fiquei ofendida. Meu amor-próprio ficou amassado – como uma folha de papel amassada e jogada no lixo. E para piorar, fiquei com vergonha porque, obviamente, eu não sou suficiente para ela. Resumo da ópera: senti que não valia grande coisa, e essa é a pior coisa que uma criança pode sentir. Tentei imaginar que criança incrível eu teria que ser para ela não querer ir para a USP.

Como se não bastasse, minha mãe também disse – e parecia feliz! – que é professora. Ela tem alunos. Quer dizer que ela me deixa em casa para dar aula para eles! Nesse momento fiquei com raiva dela e dos alunos dela. Então está me trocando por eles? Vai ver que gosta mais deles do que de mim. Isso é a mais alta traição! Foi aí que protestei! Não, mamãe, isso não! Você não é professora também, Você é só mãe!

Durante duas semanas infernizei a vida dela, de tanta raiva. Também era um jeito de testar se ela me aguentava, ou se ia me abandonar. Ela foi firme, mas presente e carinhosa como sempre. Os dias foram passando e fui digerindo o choque. Pouco a pouco comecei a fazer as pazes com a ideia de que, além de ser mãe, ela é professora. Fui aceitando a ideia de que ela gosta de dar aulas para seus alunos.

Passei por uma verdadeira revolução subjetiva. Antes eu via as coisas de um jeito e agora vejo de outro, completamente diferente. Olha só que coisa incrível eu descobri: não ser sua única fonte de prazer não significa que eu “não sou suficiente”! A verdade é que isso me tranquilizou. Conheço muitos adultos para quem, se a pessoa amada não tiver dedicação exclusiva ou é considerado alta traição, ou entendem que é porque “não são suficientes”. Sofrem muito, coitados!

Duas semanas depois, quando já estava “de bem” com os alunos dela – e no mesmo lugar em que o carro passava no momento daquela… hum…  “revelação” – eu perguntei: e qual é o nome dos teus alunos, mamãe?