Maria e os dois corações

Por Simone Rothstein

Maria (5 anos e meio) e sua mãe passavam umas semanas na casa dos avós, depois que os pais se separaram. Num final de dia, Luisa, mãe de Maria, chega e encontra a filha sentada no corredor, no chão, bem juntinho à parede.

Luisa vai dar um beijo na filha, mas Maria parecia uma mini estátua, com o rosto tenso, não se mexia, não descolava da parede.

– O que houve, filhota? Porque você tá aí toda durinha, com uma cara…

– É que eu fiz uma coisa.

Maria se mexe e mostra pra mãe o que fez:

– Eu desenhei na parede, olha.

Maria tinha pego o lápis de cera vermelho e desenhado dois corações.

*

Eu tentei disfarçar. Não queria que minha mãe visse. Eu achei que ia levar uma bronca: “Maria, você não sabe que não pode desenhar na parede?!” Eu sei que não, justamente, mas não consegui me controlar. Bem, de qualquer forma, minha mãe também não brigou comigo naquela hora. Mas o fato é que eu que queria reclamar com ela e com meu pai: “Poxa vida, vocês não sabem que não podiam se separar? Vocês estão fazendo uma bagunça!” Essa situação dos pais se separarem é bem complicada. Ouve só:

Minha mãe já me explicou que eles não queriam mais ser namorados, mas que pra sempre vão ser meus pais, blábláblá! Só que agora eu já não sei mais se posso acreditar no “pra sempre”. Será que pra sempre ainda existe? Eu achava que pra sempre a vida era aquela vida que a gente vivia, naquela casa, na nossa casa. O meu quarto ao lado do deles, o banheiro na frente e depois tinha a sala onde a gente comia, via televisão, brincava. Nós três juntos. É muito estranho estar em outra casa e ter que achar que é uma casa e que a vida continua. Pra mim eu sinto como se fosse a casa daquela música, aquela que não tem teto, nem chão, nem nada! Só que eu não acho nada engraçada. Quando sinto isso, fico com muita raiva, porque eles tomaram uma decisão e eu não pude escolher. Se eu pudesse teria deixado tudinho do jeito que era, na mesma casa com meus pais juntos! Ah se eu pudesse… Se eu pudesse colar a gente naquela casa, como uma foto que não muda nunca, ah se eu pudesse colar os corações deles pros dois ficarem juntos cuidando de mim… pra sempre. Tem horas que me dá um aperto na barriga, que passa pelo peito e chega até a garganta. Outro dia pensei que se minha casa não é minha casa, minha família não é mais a mesma, Eu ainda sou Eu? Acho que foi num desses momentos que peguei o lápis e desenhei na parede.

Agora minha rotina é não ter rotina. Quando estou me divertindo com minha mãe, meu pai avisa que tá vindo me buscar. O contrário também acontece. Tô numa boa desenhando com meu pai e minha mãe interfona dizendo pra ele me levar na portaria. E aí dá uma confusão dentro de mim! Será que se minha mãe perceber que eu queria continuar desenhando com o meu pai, ela vai achar que prefiro ele. E meu pai, idem? Ai que sufoco! Não é que necessariamente eu prefira alguém (apesar de que tem horas que sim eu prefiro alguém!), mas será que a partir de agora tenho que ter dois corações para gostar de cada um separado?

E não é só isso que me deixa aflita, veja bem: Se minha mãe preferiu não viver mais com meu pai, será que ela pode preferir não viver mais comigo? Será que ela pode não gostar mais de mim? Isso realmente é um tema que me deixa aflita. Ou será que ao contrário ela vai ficar colada pra sempre em mim?! Isso já foi alguma coisa que eu quis quando eu era muito bebezinha, eu e minha mãe sendo uma só…, mas pensar nisso hoje nisso é beeeeem estranho!

Outra coisa que às vezes eu também penso é se ela pode ficar com raiva de mim porque eu gosto do meu pai e ele de mim e, ela é que pode acabar ficando sozinha? Acho que quando eu escondia o meu desenho na parede, eu tava duriiinha de medo de minha mãe brigar comigo, não só porque desenhei na parede, mas também tinha medo dela achar que eu fui o pivô da separação deles. Eu gostava tanto de estar só com o meu pai algumas vezes…

Nos últimos tempos, quando meus pais ainda eram casados, às vezes eu ficava com ciúmes da minha mãe porque meu pai dizia que eu era a princesa, mas de noite ele saia pra jantar com ela e não comigo. Sabe que eu até imaginei uma vez que eu ia dar pra ela uma maçã daquelas que a Branca de Neve comeu e quem sabe ela iria dormir e dormir… sozinha (tipo: morreu, mas não ficar com cara de morta) e eu é que ia dormir com meu pai. Eu acho que ela não sabia, mas eu adorava quando ela ia pra academia no sábado de manhã e eu podia ir pro clube só com o meu pai. Será que ela reparava? É por tudo isso que agora eu fico me sentindo culpada, será que de tanto querer que meu pai ficasse só comigo, eles se separaram?

É muita coisa que se confunde, muitos sentimentos que fazem uma bagunça dentro de mim, porque eu mal posso pensar neles, mas eu sinto! Mas, devagarzinho vou me acostumando. E no meio de tudo isso, tô começando a entender que eu sou pequena e não vou poder ser a namorada do meu pai. Quer dizer, só assim de brincadeira, eu a princesa e ele, meu príncipe. Aliás, não sei se você já ouviu falar que tem adultas que acabam ficando sozinhas porque só arrumam amores impossíveis?! Mas enfim, eu sou pequena e ainda não entendo muito do mundo adulto.

Então por enquanto, eu torço pra que meus pais compreendam isso, que tenham paciência comigo e que, se a gente não pode ficar mais juntos, e mesmo que eles não se amem mais, que pelo menos eles fiquem bem com o fato de que eu gosto muuuuito da minha mãe (mãe, você é minha musa!) e do meu pai, meu príncipe (mas não pra sempre!) Rsrsrs.

Não estou nem aí para os fatos

Por Marion Minerbo

Eu lavando louça e Julinha brincando na sala. De repente um barulho e uma choradeira. Fui ver o que aconteceu e ela vem chorando, mas muito brava.

– O que aconteceu, filha?

– Você me machucou!

– Eu te machuquei? Você caiu do sofá? Vem cá, deixa eu ver!

– Foi você que me machucou!

– Mas eu nem estava aqui, filhinha, estava lá na cozinha lavando louça… você deve ter tropeçado sem querer, né?

– Mas você me deixou cair!

(vinheta de Bruna Zerbinatti)

Eu estava brincando no sofá da sala, pulando e dando cambalhotas. De repente alguma coisa dura veio e bateu com força na minha cabeça. Fez um TUM, um barulhão. Doía muito. Eu estava no chão. Foi ele que bateu em mim? Ou foi mamãe? Para mim dá na mesma, pois tudo o que me acontece, de bom ou de ruim, vem dela. E além de tudo, quem é que foi posta no mundo para que nada de ruim me aconteça? Minha mãe, é claro! Culpa de quem, se está doendo? Dela!

Como se não tivesse nada a ver com isso, ela veio toda boazinha ver como eu estava. Mas eu estava brava, não quis colo nenhum. Quis, sim, tirar satisfações: por que ela fez essa maldade comigo? Mas com que palavras eu ia explicar para ela como estava vivendo aquela situação? Queria dizer que estava brava e magoada porque, mesmo sendo tão forte, tão poderosa, tão inteligente, tão linda, tão tudo, ela não quis me proteger. Que ela e o chão são a mesma coisa. E que, se o chão bateu em mim, é porque ela não fez nada para evitar isso. De propósito.

Como tudo isso é difícil de explicar, – até para mim mesma – eu resumi como pude dizendo: você me machucou! Ela não entendeu nada. Ou melhor, entendeu ao pé da letra. E veio com uma explicação racional, que serve para adultos, mas para mim não faz sentido nenhum. Disse que não pode ter sido ela, pois eu estava na sala, e ela na cozinha lavando louça. Quis me convencer de que diante daquele fato, eu só podia estar errada, e que “na realidade” eu tinha tropeçado e me machucado sozinha. Ou seja, ainda por cima a culpa de minha cabeça estar doendo era minha. Que absurdo!

Ainda não tenho 3 anos. O que é um fato? O que é uma “realidade”? Para mim, não tem muita diferença entre “dentro” e “fora”: tudo o que penso, sinto, imagino, desejo, “é”. Se eu acredito que um cachorro fala, eu escuto o cachorro falar. Quando quero mamãe só para mim, tenho certeza de que papai está bravo comigo. Quer dizer, as coisas “lá fora” se comportam do mesmo jeito que “dentro” de mim.

E tem mais. Na minha realidade não existem contradições do tipo: “se estou na cozinha, então não estou na sala”. Minha lógica emocional é a dos sonhos. Se minha mãe se lembrasse dos dela, entenderia que no mundo mental alguém pode perfeitamente estar numa sala que é também uma cozinha. Ela estava na cozinha-sala quando me machucou!

Funciono na lógica dos sonhos o tempo todo, mesmo quando estou acordada. Por sorte, muitas vezes mamãe usa a parte dela que sonha para me entender. Ontem mesmo eu disse a ela que vi uma árvore sorrir quando a menina colheu uma maçã para matar a fome – era um grande sorriso de galhos abertos. Ela entendeu e sorriu para mim, em vez de tentar me convencer de que árvores não têm sentimentos.

Quero contar mais uma coisa importante: minha realidade psíquica é invisível para meus pais, e até para mim. Mas ela é tão, tão real, que produz efeitos muito concretos – muito “de verdade” – na minha vida. Te dou dois exemplos. 1) Um dia tranquei minha mãe numa torre de Lego, e depois fiquei com medo de que ela estivesse triste e brava comigo. Precisei ir lá, onde estava trabalhando, para conferir como ela estava. 2) Ontem de noite tomava minha mamadeira e pensava: que bom que não estou sozinha, a mamadeira sabe como cuidar de mim. Fiquei realmente tranquila e consegui adormecer.

Percebe como estar aflita ou tranquila é um efeito direto dos “fatos” que acontecem na minha vida mental? Você já entendeu que tudo que penso é real, quer dizer, tem o peso e a força de uma verdade absoluta. Por isso não adianta argumentar, e fica parecendo que não estou nem aí para os fatos.

Achei bizarro o que ouvi meus pais comentando outro dia: que tem adultos que ainda pensam exatamente como eu, embora já devessem diferenciar fatos de sonhos ou pensamentos. Por exemplo, diziam que tem gente que acredita que a Terra é plana. Até eu sei que é redonda. Mas para eles é um “fato” incontestável.

Para mim, que ainda não tenho três anos, os fatos também são incontestáveis: o chão bateu na minha cabeça; minha mãe podia ter me protegido, mas não o fez; se não o fez, é porque não quis; se não quis, então foi de propósito – tanto que nem me pediu desculpas! É um sinal evidente de que não se importa comigo! Essa dor emocional me machucou mais do que a dor física. Foi isso que me deixou tão brava e magoada com ela.

Como ela não entendia, percebi que precisava ser ainda mais clara. Não adiantava continuar insistindo no fato de que me machucou, porque a realidade dela é diferente da minha. Então achei melhor tentar explicar que estava magoada porque não me protegeu de propósito. Ela para ela entender que, se se importasse comigo, não teria deixado isso acontecer. Então eu disse: Mas você me deixou cair! Deve ter entendido alguma coisa, porque me deu um abraço gostoso que eu traduzi como: claro que eu me importo com você!

Quando eu crescer, sei que não vou ter dúvidas de que quem está na cozinha, não está na sala. Mas espero que a vida não fique muito sem graça, e que, como os poetas, eu possa sonhar acordada de vez em quando.