A miséria simbólica no campo do social

Por Marion Minerbo

O tema das agressões invisíveis se tornou muito visível com a pandemia. Ninguém enxerga o vírus, mas suas consequências são devastadoras. Há algum tempo, venho me interessando por outro tipo de agressão invisível que chamei de miséria simbólica. Que também tem consequências, tanto no nível do sujeito individual quanto no plano social.

A miséria simbólica é a condição de crise das representações que torna difícil pensar o mundo e a nós mesmos, seja na dimensão individual ou na social. Falta matéria prima para realizarmos o trabalho psíquico de transformar as forças psíquicas (pulsões) em sentido. Tal condição está ligada à crise das instituições que caracteriza a pós-modernidade. Mas antes de chegar à pós-modernidade, duas palavras sobre a modernidade.

As instituições da modernidade eram hierarquizadas, tinham a pretensão de serem donas da verdade, defendiam definições estreitas sobre o certo e o errado. Estou usando o termo “eram”, mas é claro que em muitos bolsões as instituições continuam funcionando desta maneira. Mas, de modo geral, dá para dizer que elas entraram em crise porque eram excessivamente rígidas. Não davam conta da diversidade das formas de subjetividade que buscam reconhecimento e legitimidade. Excluíam os que não se encaixassem nos supostos valores universais.

Com a crise das instituições, passamos a falar em Verdades – verdades que são relativas a como cada grupo se percebe, e percebe o mundo. Com isso, as minorias e outros excluídos passaram a ter voz, o que, obviamente, é um ganho. Um saudável ambiente libertário e progressista oxigenou as relações sociais.

Mas, como todo movimento pendular, ele inclui necessariamente uma passagem pelo outro extremo. É nele que reconheço a miséria simbólica. Aquilo que era um saudável relativismo se tornou um relativismo absoluto. Todas as referências são questionadas. Tudo o que é sólido desmancha no ar, para retomar a expressão de Marshal Berman. Isso pode ser vivido como liberdade, mas também como falta de chão.

Quando o pêndulo vai para o outro extremo, encontramos ideias libertárias e progressistas transformadas em ideologia, a ponto de se atacar qualquer posição divergente como manifestação autoritária. Reconhecemos a figura paradoxal do libertário progressista radical.

Além disso, já que não há verdades universais, o conceito de verdade se tornou em si mesmo ultrapassado, desnecessário, nocivo e até mesmo autoritário. E se não faz sentido falar em verdade, também não faz sentido falar em mentira. A mentira pode ser tratada como verdade, e a verdade como mentira. A única verdade legítima passa a ser aquilo que eu sinto que é verdade: a emoção é a única verdade.

Abre-se o espaço para a pós-verdade, para as fake news e para as várias formas de negacionismo. Não há mais fatos, ou melhor, os fatos não importam. Tudo o que importa são as opiniões, que não podem ser contestadas em nome da liberdade de expressão.

A miséria simbólica afeta a constituição da subjetividade. A situação é bizarra e angustiante porque temos que nos constituir em meio a referências paradoxais e contraditórias. Dou dois exemplos desse tipo de referência:

  • Há posições supostamente progressistas que, quando capturadas pela lógica esquizoparanóide, se tornam radicais e polarizadas. O paradoxo é que passam a atacar violentamente quem é considerado reacionário. Lembro aqui o episódio envolvendo a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, uma das grandes ativistas antirracismo. Um equívoco na análise do álbum da cantora negra Beyoncé fez com que fosse considerada racista e atacada nas redes sociais, o que é um absurdo.
  • E vice-versa: para afirmar uma posição progressista, é possível praticar uma tolerância absoluta, isto é, ser tolerante mesmo com quem é intolerante. Imaginem um congresso de geografia em que uma das mesas fosse composta por um geógrafo e um terraplanista, em nome da tolerância a diferentes pontos de vista. Seria um completo absurdo.

É muito difícil conseguir pensar, e agir, quando temos de nos apoiar nessa razão irracional, nessa razão pantanosa. Gastamos nossa energia correndo atrás do próprio rabo.

Percebe-se como é custoso ter de se constituir como sujeito em meio à miséria simbólica. Os enquadres são vividos como frouxos, incapazes de conter e de dar contornos ao Eu. É uma experiência angustiante.

Frente a essa angústia, que tipos de defesas serão mobilizadas pelo sujeito psíquico? Vou considerar dois fenômenos, a polarização e o conservadorismo, como respostas possíveis frente a essa angústia.

Obviamente esses fenômenos sempre existiram na história, e foram analisados por vários vértices: social, econômico, filosófico e político, entre outros. Qual seria a especificidade do olhar psicanalítico sobre eles?

Na linha de investigação aberta por Freud com O Mal-estar na Civilização, esses fenômenos podem ser vistos como soluções sintomáticas – como sintomas sociais que denunciam um mal-estar existencial profundo. Neste sentido, meu esforço é tentar entender como, e por que, tanto a polarização quanto o neoconservadorismo são “necessários” – necessários, obviamente, como defesa contra a angústia.

  1. Uma interpretação psicanalítica sobre a polarização

A polarização funciona de acordo com a lógica esquizoparanóide. Desde Klein, sabemos que uma das defesas possíveis contra a angústia de morte é a divisão do mundo em bom e mau.

Nesse sentido, a polarização pode ser entendida como resposta defensiva do sujeito individual e social frente a angústias de morte. Cria-se um inimigo, mas também um salvador, para lidar com a ameaça à sobrevivência que não se sabe o que é, nem de onde vem. A polarização possibilita, então, que se dê forma a uma ameaça informe.

Estou propondo a ideia de que o ato de transformar o outro em fonte de ameaça imaginária é defensiva frente a uma ameaça real, que não se sabe qual é, nem de onde vem.

Mas o que poderia ser essa ameaça real – e invisível –, para voltarmos ao tema do nosso Conversatório? Não tenho a menor competência para analisar a complexidade do cenário social, econômico e cultural no qual vivemos. Yuval Harari, em “21 lições para o século 21”, aborda esse sentimento de ameaça que parece paranoico, mas é real. Invisível, mas real.

A ameaça viria do sentimento generalizado de que somos manipulados por grandes corporações, mídias sociais e algoritmos. Tudo o que pensamos, sentimos e desejamos pode estar sendo inoculado em nós pelas forças do sistema. Nossas vidas nos foram sequestradas para servir à perpetuação de tudo o que está aí.

A ameaça viria também do sentimento generalizado de que, para sobreviver, o capitalismo predatório se alimenta do planeta, mas também das nossas vidas, que são espremidas até o bagaço. Vivemos com uma espada sobre nossas cabeças porque sabemos que, quando já não tivermos o que dar, seremos excluídos, descartados, e nossa existência será irrelevante.

A ameaça viria também da globalização, que se nutre da destruição das identidades locais, do comércio local, do artesanato, enfim, de tudo que caracteriza e permite a sobrevivência das identidades.

A teoria conspiratória em torno da vacina contra a Covid-19 ilustra como esse sentimento de ameaça generalizada, que não se sabe o que é, nem de onde vem, pode ser deslocado e projetado, defensivamente, em um objeto que se torna perigoso.

Segundo essa teoria, a vacina contra a Covid-19 inocula no corpo alguma coisa que serve para governos e/ou grandes corporações controlarem as pessoas. Como todo delírio, essa construção tem seu pé na realidade, mas se engana em um ponto. Os governos e as grandes corporações já controlam as pessoas. Não precisam de uma vacina para isso. Mas é sempre um conforto ao nosso narcisismo pensar que basta recusar a vacina para escapar deste controle. A função defensiva da teoria da conspiração é evidente. Ela nos dá a sensação de ainda termos alguma capacidade de autodeterminação.

Ao criar um inimigo com rosto, a polarização nos protege da angústia frente a ameaças sem rosto. Mas nos impede de perceber que todo mundo, não importa se é de direita ou de esquerda, está sendo manipulado, está sendo espremido pelo sistema, e será descartado assim que não puder produzir ou consumir

2. Uma interpretação psicanalítica sobre o neoconservadorismo

As instituições protegem nossa vida psíquica; quando estão em crise profunda, ficamos órfãos das narrativas que elas criam e sustentam. É fundamental acreditar em alguma coisa que dê sentido às nossas vidas, para não cairmos no vazio existencial. O relativismo absoluto das referências e dos valores na pós-modernidade produz um tipo particular de sofrimento psíquico, que é o desamparo identitário.

O neoconservadorismo pode ser visto como uma solução sintomática para esse desamparo identitário. É uma tentativa de voltar a ter instituições sólidas nas quais se possa confiar. Um esforço para empurrar o pêndulo para o outro extremo. Entende-se: frente à angústia da falta de chão, um movimento defensivo se torna “necessário”.

Surge, então, a afirmação autoritária de supostas verdades universais acerca do certo e do errado. Mas como a imposição desses valores é feita de fora para dentro, não resolve o problema, que é a miséria simbólica.

Claro que em muitas épocas e lugares houve grupos conservadores. Num contexto de miséria simbólica, os valores afirmados são rasos, concretos, colados na materialidade, na sensorialidade. Por exemplo, meninas vestem rosa e meninos vestem azul.