Não estou nem aí para os fatos

Por Marion Minerbo

Eu lavando louça e Julinha brincando na sala. De repente um barulho e uma choradeira. Fui ver o que aconteceu e ela vem chorando, mas muito brava.

– O que aconteceu, filha?

– Você me machucou!

– Eu te machuquei? Você caiu do sofá? Vem cá, deixa eu ver!

– Foi você que me machucou!

– Mas eu nem estava aqui, filhinha, estava lá na cozinha lavando louça… você deve ter tropeçado sem querer, né?

– Mas você me deixou cair!

(vinheta de Bruna Zerbinatti)

Eu estava brincando no sofá da sala, pulando e dando cambalhotas. De repente alguma coisa dura veio e bateu com força na minha cabeça. Fez um TUM, um barulhão. Doía muito. Eu estava no chão. Foi ele que bateu em mim? Ou foi mamãe? Para mim dá na mesma, pois tudo o que me acontece, de bom ou de ruim, vem dela. E além de tudo, quem é que foi posta no mundo para que nada de ruim me aconteça? Minha mãe, é claro! Culpa de quem, se está doendo? Dela!

Como se não tivesse nada a ver com isso, ela veio toda boazinha ver como eu estava. Mas eu estava brava, não quis colo nenhum. Quis, sim, tirar satisfações: por que ela fez essa maldade comigo? Mas com que palavras eu ia explicar para ela como estava vivendo aquela situação? Queria dizer que estava brava e magoada porque, mesmo sendo tão forte, tão poderosa, tão inteligente, tão linda, tão tudo, ela não quis me proteger. Que ela e o chão são a mesma coisa. E que, se o chão bateu em mim, é porque ela não fez nada para evitar isso. De propósito.

Como tudo isso é difícil de explicar, – até para mim mesma – eu resumi como pude dizendo: você me machucou! Ela não entendeu nada. Ou melhor, entendeu ao pé da letra. E veio com uma explicação racional, que serve para adultos, mas para mim não faz sentido nenhum. Disse que não pode ter sido ela, pois eu estava na sala, e ela na cozinha lavando louça. Quis me convencer de que diante daquele fato, eu só podia estar errada, e que “na realidade” eu tinha tropeçado e me machucado sozinha. Ou seja, ainda por cima a culpa de minha cabeça estar doendo era minha. Que absurdo!

Ainda não tenho 3 anos. O que é um fato? O que é uma “realidade”? Para mim, não tem muita diferença entre “dentro” e “fora”: tudo o que penso, sinto, imagino, desejo, “é”. Se eu acredito que um cachorro fala, eu escuto o cachorro falar. Quando quero mamãe só para mim, tenho certeza de que papai está bravo comigo. Quer dizer, as coisas “lá fora” se comportam do mesmo jeito que “dentro” de mim.

E tem mais. Na minha realidade não existem contradições do tipo: “se estou na cozinha, então não estou na sala”. Minha lógica emocional é a dos sonhos. Se minha mãe se lembrasse dos dela, entenderia que no mundo mental alguém pode perfeitamente estar numa sala que é também uma cozinha. Ela estava na cozinha-sala quando me machucou!

Funciono na lógica dos sonhos o tempo todo, mesmo quando estou acordada. Por sorte, muitas vezes mamãe usa a parte dela que sonha para me entender. Ontem mesmo eu disse a ela que vi uma árvore sorrir quando a menina colheu uma maçã para matar a fome – era um grande sorriso de galhos abertos. Ela entendeu e sorriu para mim, em vez de tentar me convencer de que árvores não têm sentimentos.

Quero contar mais uma coisa importante: minha realidade psíquica é invisível para meus pais, e até para mim. Mas ela é tão, tão real, que produz efeitos muito concretos – muito “de verdade” – na minha vida. Te dou dois exemplos. 1) Um dia tranquei minha mãe numa torre de Lego, e depois fiquei com medo de que ela estivesse triste e brava comigo. Precisei ir lá, onde estava trabalhando, para conferir como ela estava. 2) Ontem de noite tomava minha mamadeira e pensava: que bom que não estou sozinha, a mamadeira sabe como cuidar de mim. Fiquei realmente tranquila e consegui adormecer.

Percebe como estar aflita ou tranquila é um efeito direto dos “fatos” que acontecem na minha vida mental? Você já entendeu que tudo que penso é real, quer dizer, tem o peso e a força de uma verdade absoluta. Por isso não adianta argumentar, e fica parecendo que não estou nem aí para os fatos.

Achei bizarro o que ouvi meus pais comentando outro dia: que tem adultos que ainda pensam exatamente como eu, embora já devessem diferenciar fatos de sonhos ou pensamentos. Por exemplo, diziam que tem gente que acredita que a Terra é plana. Até eu sei que é redonda. Mas para eles é um “fato” incontestável.

Para mim, que ainda não tenho três anos, os fatos também são incontestáveis: o chão bateu na minha cabeça; minha mãe podia ter me protegido, mas não o fez; se não o fez, é porque não quis; se não quis, então foi de propósito – tanto que nem me pediu desculpas! É um sinal evidente de que não se importa comigo! Essa dor emocional me machucou mais do que a dor física. Foi isso que me deixou tão brava e magoada com ela.

Como ela não entendia, percebi que precisava ser ainda mais clara. Não adiantava continuar insistindo no fato de que me machucou, porque a realidade dela é diferente da minha. Então achei melhor tentar explicar que estava magoada porque não me protegeu de propósito. Ela para ela entender que, se se importasse comigo, não teria deixado isso acontecer. Então eu disse: Mas você me deixou cair! Deve ter entendido alguma coisa, porque me deu um abraço gostoso que eu traduzi como: claro que eu me importo com você!

Quando eu crescer, sei que não vou ter dúvidas de que quem está na cozinha, não está na sala. Mas espero que a vida não fique muito sem graça, e que, como os poetas, eu possa sonhar acordada de vez em quando.

3 comentários sobre “Não estou nem aí para os fatos

    • Olá, Verônica. Que bom que curtiu. Entendo o teu sorriso e tua emoção frente ao mundo mental infantil. Tem a beleza e o frescor da vida ainda em botão, e também um tanto de sofrimento que a gente nem imagina. Um abraço!

      Curtir

Deixe um comentário