Você também gosta de cozinhar?

Por Marion Minerbo

Olá, Ana Lisa, sobre o que gostaria de conversar hoje?

Olá, Marion, veja só que loucura! Ontem fui jantar na casa de amigos e aquilo não era um simples jantar: era uma verdadeira produção! Todos ali cozinhavam muito bem, e só se falou de comida! Restaurantes, programas de TV tipo Master Chef, os pratos que tinham preparado e que iam preparar, onde encontrar os melhores ingredientes. Conversaram sobre a tribo dos que só comem produtos orgânicos, dos vegetarianos, dos que não comem glúten e lactose, e por aí vai. Eu, que mal sei fritar um ovo, me senti um ET. Sorte que adoro comer bem! Claro que isso está mais circunscrito a certos grupos socioculturais, mas é tão importante que o Estadão tem o caderno Paladar e a Folha tem o Comida. O que a Psicanálise tem a dizer sobre isso?

Legal você ter comentado sobre o jantar de ontem, pois o tema interessa muita gente. Aliás, na última vez conversamos sobre distúrbios alimentares (Só pele e osso), lembra que eu apontei o fato de eles se produzirem no cruzamento do espaço psíquico individual, familiar e cultural? Então, sua pergunta de hoje nos leva à cultura, isto é, à ordem simbólica inconsciente que determina nossos comportamentos. Quando “viralizam”, como a atual febre gastronômica, são entendidos como sintomas de nossa época.

Sintomas? Mas gostar de cozinhar é alguma doença?

Ao contrário, para a Psicanálise todo sintoma é uma tentativa de cura. Tudo o que você observou ontem é sintomático, isto é, revela alguma coisa sobre o mundo em que vivemos. Os sintomas não estão certos nem errados; simplesmente são respostas a determinadas necessidades psíquicas, e preenchem alguma função do ponto de vista emocional. Podemos dizer que têm uma dimensão defensiva em relação a algum tipo de sofrimento produzido por aquela cultura. “Viralizam” justamente porque são quase que universalmente necessários naquela época e lugar.

Entendo. Você toma o “Mal-estar na civilização” de Freud como modelo para pensar essas pequenas loucuras cotidianas.

Exatamente. Cada época e lugar tem os seus valores. Quem não se encaixa, sofre. Antigamente as pessoas valorizavam a castidade feminina. Hoje, valorizam sua magreza.

É mesmo! Além de ser um padrão estético, a magreza é valorizada como se fosse uma virtude moral. É bizarro! E o que mais você pensou sobre isso?

Muitos outros fatores estão na origem disso que não é propriamente uma moda, mas uma verdadeira necessidade de cozinhar. Pensei em dois deles.

Primeiro, acho que a paixão por cozinhar tem a ver com a necessidade de recuperar atividades que fazemos de verdade, com as mãos, na realidade concreta do cotidiano. A Lu Botter, minha editora, me indicou uma TED cujo tema é “por que as telas nos tornam infelizes”? É sobre o que perdemos quando a quase totalidade do nosso tempo livre é passada diante de uma tela, seja ela do celular, do computador, da TV…

Pois bem: complementando o que ouvi na TED, mas eliminando o viés moralista do psicólogo que dava a palestra, acho que num mundo em que tantas coisas acontecem na realidade virtual, sentimos fome de uma realidade que possamos tocar, cheirar, transformar, degustar. O prazer já começa no mercado ou na feira, quando namoramos ingredientes que são uma festa para os olhos. Escolhemos o que nos apetece, e salivamos só de imaginar o que faremos com aquilo. Depois é preciso lavar, cortar, picar, temperar, preparar os molhos, deixar reduzir… Horas de contato direto com a matéria de que é feita a vida. Um luxo!

Verdade! Horas curtindo a realidade material sem a mediação de uma tela! É como pisar na areia da praia em vez de curtir a imagem de alguém fazendo isso. Sem falar na sociabilidade que se cria em volta do fogão e da mesa, tão diferente da sociabilidade das redes sociais!

Tem razão, não tinha pensado nisso… Qualquer dia conversaremos sobre elas. Certamente revelam algo sobre nossa cultura.

Além da necessidade de contato direto com a realidade material, sintoma do excesso de realidade virtual, acho que a febre gastronômica é determinada também por outro fator: a necessidade de transcendência produzida por nossa cultura. Em uma sociedade excessivamente materialista como a nossa, temos fome de elevar nosso espírito, seja através da arte, seja de alguma modalidade do sagrado. A gastronomia se presta a ser vivida nesses dois registros.

Elevar o espírito comendo?

Por que não? Fui num restaurante em que cada prato era uma verdadeira obra de arte. Entradinhas, pratos e sobremesas pareciam esculturas. Não eram apenas lindas e deliciosas. Cada uma tinha direito ao seu próprio suporte; estavam emolduradas por recipientes de formatos diferentes, feitos de materiais diferentes – cerâmica, madeira, ardósia – que valorizavam suas características. O/a chef “assinava” o prato usando o próprio molho como tinta. Não por acaso você disse que o seu jantar de ontem não era um jantar, mas uma produção. Você mesma percebeu que é uma experiência estética, estamos no campo da fruição da arte.

Até aqui eu te acompanho. Mas o que a gastronomia tem a ver com o sagrado?

Você já ouviu“isso aqui está divino, tem que comer de joelhos”? O que se come de joelhos e é divino?

A hóstia!

Pois então, essas expressões indicam que aquela experiência sensorial pode nos transportar simbolicamente para além da matéria. E de fato, certos sabores e texturas e cores e formas são um verdadeiro milagre! Os chefs são os nossos sacerdotes!

Incrível! O jantar é uma produção, a comida está divina…Nunca tinha percebido como as palavras e expressões que usamos para descrever nossas experiências indicam como estão sendo vividas, e o que elas significam para nós.

Exatamente como numa análise de consultório!

Muito louco tudo isso!

 

 

14 comentários sobre “Você também gosta de cozinhar?

  1. Adorei a dinâmica do blog! Acho muito necessário é importante psicanalistas começarem a produzir conteúdo assim, de forma acessivel para a sociedade. Parabéns!

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    • Obrigada, Ana Carolina. Estou curtindo muito escrever nessa forma de “ensaio
      ficcional” abordando psicanaliticamente micro-recortes do mundo em que vivemos.

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  2. Muito interessante o artigo. A apresentação do tema e descobrir em Marion Minerbo esse vies, quando a conhecia apenas na sua atuação psicanalítica.

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    • Obrigada, Ceci. Ser analista é tentar apreender como “fabricamos” nosso mundo – em
      plena inconsciência! – tanto no consultório quanto fora dele.

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  3. Penso em um aspecto interessante onde o jantar em si virou o centro das atenções e não mais as questões sociais envolvendo os participantes do jantar. Será que tudo isso não é para esconder uma falta de interesse pelos demais aspectos da vida? O que é mais importante, o jantar ou as pessoas que estão em volta da mesa? Food for thought…Bj.

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    • Gostei da brincadeira com as palavras, food for thought! Encaro o jantar-produção
      como um convite de um amigo para uma exposição – como se fossem fotos ou esculturas.
      Afinal, as pessoas têm necessidade de compartilhar o que produzem, seja num blog, seja na
      cozinha. Mas concordo com você: é vital que a gente possa simplesmente se reunir com
      amigos na cozinha, sem qualquer produção além da conversa e da amizade. No meu primeiro
      post (Jout Jout, uma amiga íntima virtual) falei justamente sobre a fome de despojamento, de
      simplicidade e de intimidade que a exigência permanente de performance social e profissional
      produz.

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    • Obrigada! Pois está sempre convidada a entrar na minha sala-cozinha e a degustar
      essas crônicas! É isso aí, todos nós buscamos alguma visibilidade na sociedade do espetáculo.
      Cada um com seus talentos!

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  4. Marion, que saudades!!! Estou encantada com seu blog, fico aguardando uma nova publicação e compartilho com as pessoas queridas!!! Adorei sua iniciativa!! Falar de assuntos tão complexos de forma simples e poética, enriquece a alma!!❣️ Quanta generosidade…..

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