Marion Minerbo
AnaLisa – Que loucura tudo isso que está acontecendo, né? E esse isolamento sem fim?! Aqui vamos indo. Está bem difícil para todos, especialmente para a minha irmã mais nova que tem 15 anos e está subindo pelas paredes. Outro dia tivemos uma conversa interessante sobre qual é a pior parte para cada uma de nós. Achei estranho o que um amigo dela disse: para ele, a pior coisa era não poder ir comprar pão no fim do dia, como ele sempre fez. Para evitar aglomerações, a padaria fechou. Parece uma perda um tanto banal, no meio de outras tão mais sérias.
Marion – Não sabia que você tinha uma irmã adolescente. Aqui também não está fácil. Mas me conte um pouco de como está sendo para vocês.
AnaLisa – Meu pai ficou desempregado. Está difícil conviver o tempo todo com a família neste apartamentinho. Tem horas bacanas, a gente vê TV juntos, joga cartas. Mas tem horas em que ele afunda. Isso é novo para nós, pois ele sempre foi tão seguro, tão paizão. Minha mãe tenta segurar a barra, a gente cozinha com ela, conversa. Mas dá para ver que está super angustiada com o futuro. E minha irmã se enfia no quarto e quase não sai. A mãe da melhor amiga dela morreu de Covid-19. Para ela a pior parte é estar presa entre quatro paredes. Não poder nem dar um abraço na amiga que está de luto! É vital a ela encontrar os amigos, jogar conversa fora, rir e relaxar.
Marion – Os amigos são mesmo fundamentais para todos nós. E talvez mais ainda quando se é adolescente. Uma parte do trabalho psíquico da adolescência é conseguir “perder” os pais da infância e “sair” de casa, mesmo que continuem morando com os pais. Para isso, os adolescentes precisam ser “recebidos” pelo mundo, que nesse momento é o grupo de amigos. Então ela não sofre só porque está presa. Sofre porque o isolamento prejudica esse processo psíquico, que precisa se dar concretamente, no mundo.
AnaLisa – As redes sociais ajudam – ela vive grudada no celular. Faz muitos encontros por zoom com os amigos dela; joga com eles, cantam, tocam música. Mas não é a mesma coisa.
Mas como eu te disse, queria entender aquele amigo dela. Ele é um cara diferente, meio poeta, gosta de falar dos seus sentimentos. Mas daí a sofrer porque não pode ir na padaria…
Marion – Muito sensível, a observação dele. Faz sentido, se a gente pensar em qual é a importância da rotina para nossa vida psíquica.
Olha, tem coisas que a gente faz de vez em quando, tipo uma viagem. É legal, quebra a rotina. Mas a nossa vida, nosso cotidiano, é feito de rotina. São aquelas pequenas coisas que nos dão segurança justamente porque se repetem, estão sempre lá, contamos com elas.
Em psicanalês a gente diria que a rotina é composta de vários pequenos “enquadres” que organizam nossa vida – e também nossa vida psíquica. Tipo: sair de casa a tal hora e ir para a escola ou para o trabalho, encontrar as mesmas pessoas, ter uma atividade produtiva, praticar um esporte etc.
AnaLisa – Eu achava que rotina era sinônimo de chatice. Mas entendo o que você está dizendo. O enquadre funciona como um chão mais ou menos firme sobre o qual podemos caminhar sem pensar muito.
Marion – Exatamente! Ninguém dá um passo pensando “será que meu próximo passo vai ser no chão, ou no vazio?”. Mas é isso que está acontecendo com o planeta neste momento: perdemos o chão! Nosso próximo passo é no vazio!
AnaLisa – E isso dá uma angústia enorme. A gente só descobre como a rotina é importante quando ela some de repente.
Marion – Quando sabemos o que vem pela frente, conseguimos nos preparar para enfrentar o futuro e isso nos tranquiliza. É fácil ver isso com os bebês. Como eles se desorganizam psiquicamente quando perdem sua rotinazinha.
Essas pequenas atividades do dia-a-dia, nas quais nem prestamos muita atenção, dão ao Eu o sentimento de continuidade no tempo e no espaço. Parece que para seu amigo, ir até a padaria todos os dias tinha esta função. Ele se sentia segurado/amparado por este “ritual”. Não era só o ato concreto de comprar pão. Tinha também valor simbólico. Talvez algo como: fim das obrigações do dia, começo daquilo que faz a vida valer a pena.
AnaLisa – Que interessante! Nunca tinha pensado nisso. E o amigo da minha irmã disse que quando vai chegando a hora em que ele ia na padaria, ele sente um buraco no peito, uma sensação de que está solto no espaço, quase um pânico. Claro, agora eu entendo: é como se ele desse um passo no vazio. Por isso para ele essa é a pior parte!
Marion – Belíssima descrição do que é a angústia.
AnaLisa – E para você, qual é a pior parte?
Marion – A incerteza sobre o que virá. Ter que continuar caminhando sabendo que não há mais um chão firme sobre o qual pisar. Ser obrigada a reconhecer que as supostas certezas que eu tinha não passavam de ilusão.
AnaLisa – Muito louco tudo isso!
Eu adoro essas conversas das loucuras cotidianas. Aprendo muito com elas. Obrigada!
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Obrigada por essa leitura.
Uma das coisas mais bonitas que já li.
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Que saudade que eu estava! Muito obrigada, esse diálogo me ajudou a pensar e nomear várias coisas.
Um abraço grato!
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Estava com saudades dessas conversas tão profundas e singelas! Obrigada
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Para mim também, a incerteza do amanhã, a construção de tudo novamente e a possibilidade de perder as pessoas que amamos tem sido muito dolorido!
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A incerteza é sempre difícil de ser “digerida”. Belíssimo diálogo. 🌻
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