Quem “seremos” depois de tudo isso?

Por Marion Minerbo

AnaLisa – Olá, Marion! Queria retomar nossa última conversa sobre o isolamento, pois me ajudou bastante a nomear alguns sentimentos e angústias meio difusos. Falamos que cada um está sofrendo por um motivo diferente, mas andei pensando sobre os efeitos que essa pandemia vai ter sobre a sociedade de forma geral. Um ponto de vista mais coletivo…

Marion – Nomear sentimentos e angústias sempre ajuda, né? Você tem toda razão: a pandemia afeta a sociedade como um todo. Do ponto de vista psicanalítico, esse acontecimento pode ser pensado como um trauma coletivo. Veio sem aviso prévio, nos encontrou despreparados, tirou nosso chão.

AnaLisa – Interessante você ter falado em “trauma”, pois eu costumo pensá-lo como algo pessoal, ou individual. Mas é verdade: nesse caso estamos todos mais ou menos no mesmo barco, considerando as diferenças imensas em termos de recursos materiais e psíquicos de que as pessoas dispõem.

Marion – Exatamente. O mais louco é que se trata de um tipo de violência que não conhecíamos, e por isso é até difícil reconhecê-la como tal. Talvez você se lembre da angústia branca, termo que o psicanalista francês Andre Green usou para descrever o sofrimento psíquico mudo, invisível e silencioso das patologias do vazio. Analogamente, acho que poderíamos falar desse sofrimento atual como violência branca. Faz sentido para você?  

AnaLisa – Lembro, sim, do Andre Green, e do conceito de angústia branca. E faz todo sentido a associação que você fez, já que o próprio Corona vírus é invisível e silencioso!

Marion – E a violência branca é uma violência sem sangue, silenciosa, mas pode matar. O trauma branco arrebenta nossa pele psíquica não só pelos efeitos devastadores em nossas vidas, mas também porque é algo que não faz sentido para nós em pleno século 21! Não temos repertório para lidar com isso. Quem imaginaria o planeta (quase) inteiro de quarentena? As fronteiras fechadas?

AnaLisa – Para mim, a pior parte desse “trauma branco” (que chique falar assim!) é lidar com a incerteza do futuro. Psiquicamente falando, a sensação é de tentar me equilibrar sobre um chão de areia movediça. Exaustivo!

Marion – Sem dúvida! Além dessa incerteza, é brutal termos que conviver diariamente com a angústia da ameaça de uma morte solitária, lenta, por asfixia. Um contato tão direto com nossa vulnerabilidade é mais do que damos conta de metabolizar!

AnaLisa – O confinamento físico não era parte da nossa realidade. Era coisa só para criminosos presos em solitárias.

Marion – E não temos como combater o “inimigo”, o que pelo menos nos colocaria numa posição menos impotente, mais ativa. Ter de abrir mão da nossa rotina diária também é traumático porque ela nos dá uma sustentação psíquica. Isso sem falar nas consequências da devastação econômica que nos aguarda.

AnaLisa – Se aprendi direito com as nossas conversas, o traumático nos obriga a entrar em contato justamente com esse desamparo e com a absoluta falta de garantias com relação ao futuro. E certamente deixa marcas que ficam inscritas em nosso psiquismo…

Marion – É por aí mesmo. Os traumas deixam sim suas marcas. Pense em uma pessoa que passou por uma guerra. Será que ela consegue voltar a viver “como antes”? Não tanto em relação às atividades cotidianas, mas à experiência subjetiva propriamente. Será que dá para metabolizar o horror, ou o que não foi integrado vai continuar a assombrá-la pela vida afora?

AnaLisa – Eu imagino que algumas marcas não desaparecem nunca. A experiência subjetiva de quem já passou fome, por exemplo, será sempre diferente daquela de quem nunca sofreu privações desse tipo. Talvez ela olhe para seu prato de comida com a consciência aguda de que ele poderia não estar lá. Talvez viva constantemente com medo de voltar a passar fome. Talvez a imagem de uma criança faminta se imponha entre duas garfadas.

Marion – Trazendo pra nossa realidade atual de pandemia, será possível recalcar tudo isso e continuar vivendo tranquilamente? Ou viveremos em constante paranoia, evitando aglomerações, vendo sinais de perigo em cada espirro? Ou iremos incorporar períodos de isolamento em nossas rotinas, criando e nos adaptando a um “novo normal”?

AnaLisa – Daí a gente volta para uma perspectiva mais individual, né, Marion? Pois cada um vai lidar com esse trauma a partir de sua própria história emocional e dos recursos psíquicos disponíveis. Quer dizer: o trauma branco é coletivo, porém seus destinos são singulares.

Marion – Perfeito! E é possível que as inscrições do traumático não desapareçam nunca. Talvez a consciência permanente de que tudo é efêmero nos ajude a aproveitar e a sentir gratidão pelo que temos. Talvez, ao contrário, a angústia nos impeça de aproveitar o que temos, enquanto temos. Viveremos dentro de um pesadelo constante?

AnaLisa – Talvez. Mas, numa visão mais otimista, podemos pensar que há traumas que cicatrizam. Dizem que o tempo cura tudo…

Marion – Talvez seja possível elaborar e integrar a experiência traumática ao longo do tempo. A vida pode, sim, voltar a ser “como antes”. Pode até ficar mais rica, se pudermos incluir em nossos repertórios – psíquico, comportamental, relacional – o que descobrimos durante o período de crise. Podemos voltar a confiar na estabilidade do mundo, usufruindo desta ilusão necessária para reconstruir nossas vidas. Ou ainda, a cicatriz pode se abrir a qualquer momento em situações análogas, e a nossa absoluta vulnerabilidade voltará a nos assombrar quando menos esperamos.

AnaLisa – Quem seremos depois de tudo isso?

Marion – Quem viver (!), verá!

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