Machuquei a bolacha!

Por Marion Minerbo

Julinha (2 anos e meio) estende a mão para pegar a bolacha da mão da mãe. A bolacha cai no chão e se espatifa. Acontece uma crise sem precedentes. A mãe diz que não tem problema, pega outra bolacha do pacote e diz: “toma, é igual”.

A criança continua berrando, inconsolável por causa da bolacha quebrada. Ela está transtornada.

A mãe continua, um pouco menos paciente, mas ainda ok com a situação: aquela quebrou, mas tem outra igual, peguei do mesmo pacote, tem um monte!

A crise continua até a mãe perder a paciência. Já aos berros, continua insistindo que está dando uma igualzinha, não tem motivo para chorar, e considera que o berreiro é manha.

JULINHA (dois anos e meio): Não é fácil te explicar o que me deixou tão transtornada quando vi que a bolacha se quebrou. Mas vou tentar.

Para mamãe, uma bolacha é uma bolacha. Uma guloseima. Por isso, ela imaginou o óbvio: que eu estava frustrada porque fiquei sem alguma coisa gostosa que eu queria muito. Como se tivessem tirado um doce da boca de uma criança. E então ela tentava me mostrar que eu não ia ficar sem bolachas porque tinha muitas iguais no pacote – era só pegar outra inteira.

Se fosse isso, seria fácil. Eu não teria ficado transtornada. Quando olhei para a bolacha espatifada, não sabia se aquilo tinha acontecido com ela, comigo ou com mamãe. É que eu ainda sou pequena, então confundo tudo. A bolacha sou eu? É a mamãe? Quando como um doce gostoso – adoro doces! – é como comer a mamãe, que também é gostosa? Olha que confusão: sinto muitas coisas, mas não consigo saber se aquilo vem de mim e do meu corpo; ou se vem de fora de mim, do corpo da mamãe.

Por isso, para mim a bolacha não era uma simples bolacha. Está aí uma ideia difícil de os adultos entenderem. Era gente. Tinha um corpo. Sentia coisas. Levei um susto quando se quebrou porque eu tinha machucado ela sem querer. Tinha um monte de pedacinhos no chão. Devia doer muito! Fiquei horrorizada. Me senti terrivelmente culpada e não adiantava mamãe dizer que foi sem querer.

Desesperados, os pedacinhos de corpo “dela” olhavam feio para mim. A bolacha estava furiosa. Fiquei com medo de que fizesse a mesma coisa comigo – que me castigasse, que me deixasse espatifada no chão. Ela me acusava, dizia que sou má e que a culpa era minha. Ela tinha razão. Só que eu não sabia como sair daquela situação.

Quando faço alguma coisa errada e mamãe fica brava comigo, preciso muito que me perdoe. É urgente – urgentíssimo! – sentir que posso consertar o mal que fiz a ela. Fico transtornada se demora para me perdoar, ou pior, se vira a cara quando peço desculpas. Me sinto um monstro – porque só um monstro não merece perdão! Muito menos o amor da mamãe, sem o qual eu não vivo.

Você já entendeu que, enquanto mamãe não mostra claramente que me perdoou, continuo me sentindo um monstro. Sinto que não mereço existir, muito menos ficar junto com as pessoas – e que meu lugar é lá, com os outros monstros. E só ela pode me resgatar desse lugar horrível. Só ela pode apaziguar meu desespero. Agora você entende por que eu precisava muito que a bolacha me perdoasse? A bolacha era também a mamãe! Mas como podia me perdoar, se estava lá no chão, espatifada?

Mamãe não tinha como adivinhar tudo isso, mas eu precisava muito sentir que podia consertar o que tinha feito. Precisava cuidar da bolacha para que se sentisse bem e feliz de novo. Só assim ela poderia me perdoar e eu deixaria de ser um monstro. Não sei se você me entende: eu precisava consertar a bolacha para consertar mamãe e me consertar também.

Por isso não adiantava mamãe me dizer que tinha outras bolachas no pacote. Nem que eu tinha deixado a bolacha cair sem querer. Foi então que tive a ideia de brincar de consertar a bolacha. Como você sabe, brincar é um santo remédio para nós, crianças pequenas. Não é só diversão: é uma necessidade emocional das mais importantes.

Olha só que brincadeira eu acabei inventando junto com a mamãe. Uma conversa de nós três.  

Bolacha (num tom acusatório): Você me deixou cair, eu estou quebrada, está doendo muito.

Julinha (chorosa): Eu sei, Bolacha, fiquei muito assustada com o que fiz, e quero te ajudar.

Mamãe (amorosa e animada): Julinha, vamos levar a bolacha para o hospital? Lá o médico vai cuidar dela e ela vai ficar boa.

Julinha (já parando de chorar): Vamos, sim, mamãe.

Julinha (agora, animada): Bolacha, eu vou cuidar de você. Agora está doendo, mas logo vai passar. Você vai ver.

Bolacha (feliz): Que bom que você está cuidando de mim! Vou ficar boa […]. Pronto, sarei! Eu já perdoei você.

Julinha (aliviada): Mamãe, a bolacha sarou! E ela me perdoou! Agora você pode me dar outra, para eu comer?

Mamãe: posso sim, pega aqui.

8 comentários sobre “Machuquei a bolacha!

    • Olá, Marcia, obrigada. Feliz com tua mensagem. Pretendo escrever outros nessa linha.

      A ideia é apresentar aos pais o incrível mundo mental das crianças, invisível a olho nu.

      E compartilhar com os psis a teoria “encarnada na clínica”, brotando fresquinha das situações banais do dia-a-dia das crianças. É uma maneira de mostrar como teoria e clínica se iluminam reciprocamente.

      Se você tiver fragmentos do cotidiano de crianças pequenas, pode me mandar.

      Abraços

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    • Olá, Juliani, adorei receber sua mensagem. Saudades. Imagino que você tenha gostado de reconhecer a teoria na “clínica”, né? O que eu mais curto ao escrever esses textos é poder compartilhar com vocês uma ideia cara para mim: a teoria não está empoeirada, esquecida lá nos livros de uma estante. Ela está viva, pois sem ela não dá para entender tantas situações enigmáticas do cotidiano das crianças (e dos adultos). Abraços

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    • Olá, João Marcio, muito obrigada pelo teu comentário.

      Adorei os termos que você usou para descrever a psicanálise viva, fresquinha, encarnada nas situações mais banais do cotidiano.

      Quero repetir tuas palavras: “gosto de terra molhada, joelho sangrando e chá quente assobiando na chaleira”. Pura poesia. Sendo que poiesis, em grego, é a atividade por meio da qual alguém traz à vida algo que não existia antes. É exatamente minha intenção: mostrar como a teoria brota da “clínica” (e, ao mesmo tempo, permite iluminar a clínica).

      Vou tentar escrever vários textos nesta linha. Se tiver alguma situação do cotidiano que gostaria de ver descrita pela voz da criança, pode me mandar.

      Abraços

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