É isso um beliscão?

Por Simone Wenkert Rothstein

Ainda era cedo. Sentadas junto ao mar, estavam Ana, com sua filha Bia (de 10 meses) no colo e com elas, uma amiga de Ana, com quem conversava. O tom animado predominava, mas vez por outra, Ana se exaltava. Em um desses momentos, irritada, Ana conta à amiga que Bia está com mania de beliscá-la: “Tá vendo, olha só, ela tá me beliscando agora!” Bia está no colo da mãe, que se mexe mais agitadamente e é possível ver que sua mão minúscula aperta o braço da mãe. 

Passado um pouco as amigas se sentam com Bia na beirinha d’água, as pequenas ondas vêm e vão de mansinho. Bia se alegra, parece que quer pegar a água. As três se divertem. Alguns minutos depois, Bia se aninha no colo da mãe e adormece.

*

Que ótima ideia essa a de me dar voz! Os adultos que eu conheço parecem achar que enquanto eu não falo, não sou uma pessoa que percebe e sente coisas. Acham que sou como um cachorrinho fofo que come, dorme, faz cocô e xixi. Não acho muito inteligente da parte deles me verem assim: Só sentimos quando podemos usar as palavras?! Eles acham que eu só começo a existir quando já sei falar?

Pra começar quero dizer que em geral minha mãe é ótima. Super cuidadosa e atenta às minhas necessidades, procura me entender e entender quem eu sou. Mas tem horas que reparo que ela “dessintoniza” e não me olha, me vendo, sabe como é isso? Parece que a pessoa tá vendo outra no seu lugar? Foi o que aconteceu hoje: minha mãe achou que eu estava beliscando ela. 

Eu queria que ela pudesse me escutar: “Sabe mãe, você tá começando a me conhecer e eu a você. Até eu nascer eu conhecia a tua voz, o teu estomago, intestino e coração. Além claro daquela “piscina mágica” que crescia junto comigo. E você? Você sentia os meus movimentos, tinha algumas notícias sobre o meu tamanho e foi acompanhando desde que eu era uma uvinha, depois damasco, fui muitas frutas até melancia. 

Enfim, eu era uma salada de frutas e era também os teus sonhos, tudo o que você idealizou que eu fosse. Só há poucos meses eu virei tua filha real e você, a minha mãe real. No comecinho a gente era como que continuação uma da outra, mas a verdade é que a gente precisa se acostumar uma com a outra e, mais ainda, a gente tem que se acostumar com o que podemos ser na vida real.”  Será que se ela fica frustrada com a mãe real que ela é? Iiix, será que ela fica frustrada por eu não ser a filha que ela sonhou? É, a gente precisa ir se ajustando.

Tem horas que eu estou tão excitada, tão apaixonada, tão feliz de estar no colo da minha mãe, de sentir o calor do corpo dela, de sentir aquela pele macia (gente, ela é muito gostosa!), que eu aperto mesmo. Ah se eu pudesse grudar nela! Ah se eu pudesse ter o corpo da minha mãe como se fosse parte do meu! Só que tem um porém: eu tenho a impressão de que, quando eu a aperto, ela acha que eu estou reclamando, com raiva, beliscando ela. Com quem ela está me confundindo? “Não mãe, eu só te quero muito!”

Sabe, eu preciso que minha mãe esteja bem com ela, preciso do corpo da minha mãe pra organizar o meu, pra me assegurar de que eu existo. O corpo dela me ajuda a lidar com umas sensações muito horrorosas, umas angústias terríveis! Tem horas que parece que eu posso cair, ou me derreter, tem outra sensação apavorante que é a de me sentir em pedaços. E é esse abraço gostoso junto com: a voz dela, o leite morno que vai me esquentando por dentro (eu tenho o lado de dentro e o lado de fora!), os olhos dela olhando os meus… tudo isso me ajuda a sentir que eu sou uma unidade, um corpo todo coberto de pele, sou uma pessoa. Ah, se todo mundo tivesse esse abraço-envelope igual ao que a minha mãe me dá! 

Digo a você que já aconteceu, vez ou outra, de eu sentir que minha mãe ficou muito sensível, e mesmo sendo uma adulta, assim alta e linda (modéstia à parte), ela ficou como um bebê angustiado, quando sente que pode explodir. Nesses momentos, fiquei tensa, parecia que eu é que tinha que segurar ela. Pode ser que nessas horas, não por paixão, mas por medo e tensão, eu tenha segurado ela mais forte. Ainda bem que isso é raro. Porque se não, eu podia me tornar um bebê duro, uma criança ou mesmo um adulto eternamente em busca de meios de me sentir firme: muita musculação, muita comida, ou outras coisas que me dessem a sensação de firmeza que eu não teria conquistado pela falta de apoio de minha mãe. 

Em geral, minha mãe logo se acalma porque conversa com alguém, porque vê que eu tô feliz… Algumas vezes nos acalmamos juntas. Nesse dia da praia foi uma dessas situações. Ela tava tensa, claro que eu senti. Eu percebo na voz, no ritmo dos movimentos dela e aí, parece que ela pode me deixar cair. Mas a conversa com a Ana deixou o coração dela mais calmo, o corpo mais macio e aí, fomos pra beirinha do mar. O vai e vem das ondas nos fez um bem tão grande! Lembrou aquela sensação de segurança quando a gente sabe que a-mãe-saiu-mas-já-vai-voltar. E a sensação de que não viro líquido e desaguo no mar. 

Acho que tanto eu quanto minha mãe relaxamos quando sentimos que estamos inteiras, não nos desmanchamos e nem nos perdemos uma da outra. 

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