Ufa, eles me encontraram!

Por Simone Rothstein

Era final de tarde de um sábado comum. João (3 anos) e seus pais entram numa livraria próxima ao prédio onde moram. Depois de folhear e selecionar alguns livros, os pais levam João à seção infantil, onde o deixam João brincar. O casal então se divide entre a passada de olhos nos livros escolhidos e alguma discussão irritada, mas bastante disfarçada, por estarem em local público. De repente percebem que João não está mais junto deles. “Cadê o João?!”

A procura pelo filho dura pouco tempo. Entre as estantes está João, observando o movimento dos pais.

*

“De novo, João?!” Essa é a primeira coisa que meus pais falam quando me encontram. Reclamam. Não sei dizer com que frequência acontece de eu fugir deles. Mas minha mãe tem razão, volta e meia eu fujo. Tenho meus motivos pra fugir, mesmo correndo o risco de me perder.

Se eu fosse um pouco mais velho eu é que iria perguntar pros meus pais: “De novo mãe, de novo pai?! De novo vocês brigando? Já pensaram sobre o que eu posso estar sentindo no meio desse fogo cruzado? Vocês parecem meus coleguinhas da creche brigando por causa da bola ou da boneca!” Mas ainda não consigo organizar todas essas ideias, sou pequeno e só sinto uma coisa bem ruim no meu peito.

Nessa última vez a gente estava na livraria. Eu gosto quando fazemos esse programa e sinto que meus pais também. Os dois gostam de ler e sempre leem pra mim na hora de dormir. Eu adoro, mesmo não sabendo direito se o mais legal é o livro ou ter a atenção deles inteirinha pra mim. Não importa, na verdade. Importa que estou com eles e isso me acalma.

Mas voltando à livraria, os livros parecem servir de escudo pra todos nós. Meus pais ficam ali se atacando e tentando disfarçar com o livro na frente do rosto pra ninguém reparar na briga. Mas então o que acontece? Eles simplesmente não podem me ver. Estão abduzidos pelo conflito, pela raiva do outro. Nessas horas eu não existo pra eles! Parece até que não se importam comigo.

Você tem ideia do que é para uma criança pequena como eu ter medo de que teus pais não se importem com você? Por que eles se importariam? Será que não seria melhor para eles se eu não existisse? Toda hora eles comentam que estão cansados. Vejo as brigas e… não sei não. Será que eu é que estou causando toda essa confusão? Afinal de contas, eles trabalham, chegam cansados e ainda tem que cuidar de mim. Será que eles podem ficar com raiva de mim por ter que me dar banho ou me colocar pra dormir? Será que eles podem ter raiva de mim porque isso obriga eles a serem adultos? Será que eu sou o culpado pelas brigas deles? Será que eu tenho que fazer alguma coisa para eles pararem de brigar?

Tem horas em que não importa qual é a razão, mas só de sentir que eles estão com raiva um do outro fico com muito medo. Meu chão treme, como um terremoto, sinto que posso afundar. Eu preciso de estabilidade, preciso dos meus pais firmes, confiáveis. E nesses momentos de briga não dá para saber o que vai acontecer nem com eles, nem comigo. Dá medo. Dá aquele sentimento ruim no peito que chamam de angústia. Você me entende?

Eles não percebem minha aflição. Ou percebem, mas não conseguem se controlar, o que é até pior. Acho que eles ainda não entenderam que as minhas fugas são a forma que eu encontrei de reclamar: “de novo vocês se perderam de mim, ficaram aí discutindo umas coisas que não entendo, mas que deixa vocês muito, muito longe; como duas crianças de quem eu é que preciso cuidar. Tão longe de mim que eu fico sem chão!”

Na hora em que eles saem correndo para me procurar, mesmo que eles estejam irritados, ah, que coisa boa! Em minutos eles cresceram e viraram meus pais de novo! Minha aflição pela briga acaba. Nesse momento eu vejo que me amam. Todo o risco que corri já valeu a pena por esse instante, por ter o olhar, o sorriso e a atenção deles, tudinho pra mim. Até a bronca que eu geralmente levo me conforta de algum jeito. Entendo que eles ficaram com raiva de eu ter fugido e com medo de não me encontrarem também. E se ficaram com medo é porque não queriam me perder. Sim, eles me amam!

Então, agora talvez você compreenda como eu sou esperto. Aliás, fazer isso na minha idade é coisa de menino “safo”. É o melhor jeito que posso dar considerando os recursos que tenho. Mas é curioso como existem até adultos que quando não conseguem lidar com situações complicadas também fogem. E eu que achava que só pessoas pequenas tivessem essas dificuldades!

Com as minhas fugas, consigo me afastar do medo de ser abandonado, da angústia que me dá quando meus pais brigam e, ao mesmo tempo, fazer com que eles parem de brigar e venham atrás de mim. É um estresse, mas que vem seguido de um alívio enorme. Qualquer coisa vale a pena para não ser engolido por aquele terremoto medonho!

Eu preciso fugir às vezes, sim, mas o que preciso ainda beeeeem mais é ser encontrado.

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